segunda-feira, 5 de setembro de 2016

O estranho amor dos extremistas hindus pela vaca

[Traduzo a seguir artigo de Julien Bouissou publicado no site do jornal francês Le Monde. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]

Os chifres das vacas são pintados com tinta fosforescente para torná-las mais visíveis - (Foto: Sam Panthaky/AFP)

Asilos de  idosos, ambulâncias, brigadas de proteção: na Índia, os bovinos estão no centro de todas as atenções.

É o resgate da glória e da devoção. Enquanto 550 pessoas morreram em 2015 em acidentes ligados a animais vagando em vias públicas, policiais indianos de Madhya Pradesh, um estado localizado no centro do país, acabam de decidir por pintar com tinta fosforescente os chifres -- as faixas e "coleiras" refletoras, pouco confiáveis, fracassaram na segurança do trânsito. Uma medida que serve para proteger os bovinos, ao menos tanto quanto os motoristas.

É que depois da chegada ao poder do primeiro-ministro nacionalista hindu Narendra Modi, em maio de 2014, a vaca está no centro de todas as atenções. O governo indiano cogita principalmente de construir 1.850 asilos de idosos para que os animais possam neles chegar ao fim de suas vidas, em vez de nos matadouros. Na maior parte dos estados, matá-los já é ilegal, alguns deles chegando mesmo a  punir com dez anos de prisão a venda e a retenção de carne de vaca.

"A vaca é nossa mãe", afirmam os extremistas hindus, citando textos sagrados. No estado de Jharkhand, até ambulâncias para vacas surgiram em novembro de 2015, ao passo que não existe ainda nenhum número de emergência para atendimento aos indianos. E já que não há nada melhor que a ciência para tornar verdade uma crença, cientistas do país anunciaram ter descoberto ouro na urina de vaca ... [Isso ocorreu na Universidade Agrícola de Junagadh localizada no estado de Gujarate, região oeste da Índia -- cientistas da universidade colheram 400 amostras de urina de vacas da raça gir, típica desse país oriental. Curiosamente, foram encontrados vestígios de ouro no líquido excretado pelos animais. "Tínhamos a informação, proveniente de fontes antigas, sobre a presença de ouro na urina das vacas, bem como de suas possíveis qualidades medicinais. Como não havia um análise científica cuidadosa que o provasse, decidimos fazer a pesquisa", diz Balu Golakia, responsável pelo estudo, em entrevista ao jornal indiano Indian Express.]

Fardo financeiro

Mas essa afeição transbordante faz do amor algo prejudicial. A veneração ao animal contribui para sua extinção, e não apenas devido aos acidentes de trânsito. A vaca  não é mais utilizada por seu leite, porque as búfalas são muito mais generosas. Não é mais usada para arar os campos, porque os camponeses preferem o trator. E, por fim, seus excrementos não servem mais para adubar a terra. A menos que os extremistas hindus transformem sua urina em ouro, a vaca não rende mais grande coisa. E se não pode nem mesmo ser mandada para o matadouro, ela se transforma em um fardo financeiro para seu proprietário, que prefere abandoná-la ou mandá-la para um estado vizinho, onde o abate seja permitido.

O animal sagrado parece finalmente não servir mais do que para afirmar a supremacia hindu num país em que as minorias religiosas representam 17% da população. Esses são aliás, juntamente com os intocáveis [o termo dalit foi utilizado pela primeira vez em finais do século XIX pelo ativista Jyotirao Phule para designar quem, no sistema de castas do hinduísmo, é designado como "shudra", grupo formado por trabalhadores braçais, considerados pelos escritos bramânicos, sobretudo o Manava Dharmashastra, como "intocáveis" e impuros. O termo deriva de uma palavra em sânscrito que significa tanto "chão" quanto "feito aos pedaços". Desse modo, conota que a condição dos "dalits" é de oprimidos e, portanto, não podem reverter essa situação. O termo, assim, é considerado preferível, pelos ativistas e intelectuais dalits, aos mais pejorativos "shudra" e "intocáveis".], os principais alvos das brigadas de proteção às vacas, cujos ataques aumentaram após a chegada de Narendra Modi ao poder. Em 2015, pelo menos cinco muçulmanos foram mortos por comandos hindus por suspeita de terem comido carne de vaca ou feito tráfico de bovinos.

Os especialistas do hinduísmo afirmam entretanto que os próprios hindus sacrificavam vacas ou consumiam sua carne antes que isso se tornasse um tabu. Em sua obra "O Mito da Vaca Sagrada" (ed. Navayana, não traduzido), o historiador Dwijendra Narayan Jha considera que, em sua opinião, o animal é hoje um mito que convém sobretudo a certas ambições políticas. E os chifres fosforescentes desse animal certamente não mudarão nada disso.

[Uma outra reportagem do mesmo site francês, agora de autoria de Edouard Pflilmin, diz que "a vaca é o coração espiritual e também econômico da Índia". 

 Uma crente hindu durante a Gopashtami, festa de adoração das vacas, em Hyderabad, em 31 de outubro de 2014 - (Foto: Mahesh Kumara/AP)

Diz o texto (datado de 12/3/2016) que  a vaca é sagrada para os hindus, e que nos últimos meses anteriores a essa data a Índia tivera violências ligadas aos bovinos, gerando inúmeras mortes. Tais violências são encorajadas pelo governo de Narendra Mori, que se expressou com virulência contra o massacre dos bovinos e quase justificou as mortes humanas.

Mas, apesar dessa repressão governamental, a carne mantém-se como um pilar da economia indiana. É verdade que o rebanho bovino indiano reduziu-se em 4,1% de 2007 a 2012, mas a Índia é o quarto maior produtor de carne do mundo, atrás do Brasil, da União Europeia e da China, segundo o site indiano Quartz. O país é seu  principal exportador, o que lhe rende mais ainda que o  arroz basmati. A Índia é também o quinto maior consumidor mundial de de carne de vaca, um consumo em alta regular sobretudo por muçulmanos e cristãos. O sucesso é tal, que os camponeses vendem mais e mais sua produção pela Internet. 

Eu (Vasco), pessoalmente, vi de perto essa reverência pela vaca quando estive na Índia e no Nepal no final dos anos 1990, em missão oficial pela Eletrobras. Em um dos deslocamentos em carro da embaixada brasileira, passamos por uma vaca e perguntei ao motorista (um paquistanês) o que acontece quando alguém atropela e mata uma vaca. Ele deu uma freada brusca, olhou-me com muito espanto e disse "mas a vaca é nossa mãe"! Insisti na pergunta e ele então me disse que quem matar uma vaca em condições como a que citei tem que fazer uma estátua em ouro do animal, de dimensões de algum modo compatíveis com sua riqueza pessoal, levá-la a um templo e cumprir uma penitência. 

As vacas perturbam completamente o trânsito, porque às vezes ficam paradas no meio da rua ou da estrada, de pé ou deitadas, e os motoristas têm que se virar para não atingí-las.






A intromissão da vaca na vida diária dos indianos - (Fotos: Google)

Uma amiga nossa, uma artista plástica de renome internacional, foi à Índia há muitos anos atrás participar como conferencista de um evento na sua área. Ela era uma mulher alta e forte. Quando passeava por uma rua, não me lembro onde, com sua bolsa de palha a tiracolo, uma vaca começou a seguí-la e a tentar comer sua bolsa. Em certo momento, nossa amiga deu uma forte cotovelada na vaca para afastá-la; imediatamente foi cercada por populares, que ameaçavam agredí-la, foi levada presa a uma delegacia e foi solta por interferência de nossa embaixada.

Outra presença estranha -- e crescente -- da vaca na vida dos indianos é pelo uso de sua urina para fins terapêuticos, em aumento visível no país. Desde 2014, o governo indiano já gastou US$ 87 milhões com estábulos para vacas. Urina destilada de vaca vende pelo menos tanto quanto seu leite, na Índia. "Cerca de 30 remédios caseiros podem ser feitos com a urina da vaca", disse Sunil Mansinghka, coordenador-chefe na Go-Vigyan Anusandhan Kendra, uma instituição de pesquisa focada na vaca em Nagpur, financiada por dois grupos hindus. "Nossa ambição máxima é fazer com que o elixir chegue aos nossos compatriotas", acrescenta ele.

O estado de Rajasthan chegou ao ponto de criar uma secretaria para vacas, para proteger um animal que, segundo alguns críticos, tem mais direitos que os 2 milhões de cidadãos sem teto no país. Há sérias controvérsias quanto à salubridade do uso da urina de vaca para fins medicinais, porque ela tem a potencialidade de conter patógenos. O médico veterinário treinado na Índia, Navneet Dhand, professor de bioestatísticas e epidemiologia veterinárias da Universidade de Sidney, menciona três doenças prevalecentes na Índia que potencialmente podem ser transmitidas por urina não destilada de vacas infectadas: leptospirose, que pode causar meningite e falha hepática; artrite, provocando brucelose; e febre Q, que pode provocar pneumonia e inflamação crônica do coração. Apesar disso, cresce no país o número de clínicas dedicadas à terapia com urina de vaca.
Clínica de saúde com terapia de urina  de vaca, na Índia - (Foto: Anindito Mukherjee/Bloomberg)

Virenda Khumar, fundador da rede de Jains de clínicas de saúde que fazem terapia com urina de vaca [ver foto acima], disse que já administrou medicamentos derivados da urina de vaca para 1,2 milhão de pacientes nas duas últimas décadas, para doenças que vão de câncer a distúrbios endócrinos (como a diabete).





Coleta de urina fresca de vaca para uso medicinal na Índia - (Foto: Google)

O sistema de castas na Índia, que rege toda a vida dos indianos e está envolvido também nesse  culto à vaca, é complicado e absolutamente bizarro para o mundo ocidental. Um excelente livro para conhecer esse mecanismo de divisão da sociedade indiana é o "Caste - Its twentieth Century Avatar", editado e apresentado por M. N. Srinivas (ed. Viking - Penguin Books, 1996).]  




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