quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Fé e vestuário: para as religiões abraâmicas, a roupa é ao mesmo tempo trivial e vital

[Traduzo a seguir artigo de autoria de Erasmus, publicado na revista The Economist. Trata-se de mais um texto que aborda a questão do vestuário e os problemas adicionais que ela tem trazido para o relacionamento entre governos e cidadãos europeus e pessoas que professam a fé islâmica. Ver também:

Site árabe reclama de hipocrisia na Rio 2016: mulheres criticadas por usarem hijab e minissaia

A França e seus atritos gratuitos com os devotos do islamismo: agora é a proibição do burquini em algumas de suas praias ]

(Foto: Reuters)

Por que as autoridades religiosas são tão fortemente afetadas pelo que vestimos quando nos deslocamos em nossa vida diária, quando prestamos culto ... ou, de fato, até quando nadamos? Esta não é uma pergunta boba. Afinal, a literatura sagrada contém muitas declarações ou afirmações que parecem estabelecer o contrário: que a roupa não importa, ou importa menos do que pensamos. Qualquer que seja a impressão que queremos passar através do nosso vestuário, Deus verá através dele. Um verso bombástico nas escrituras hebraicas diz que "o Senhor não vê como o homem vê: o homem olha para a aparência externa, mas o Senhor olha o coração". No Islã há um hadith (ou ditado tradicional) que menciona que "Deus olha não para suas figuras, não para suas roupas, mas Ele olha para seus corações". E Jesus de Nazaré diz a seus seguidores que sejam mais como lírios nus crescendo em um campo, livres de preocupações quanto a roupas e alimentação. 

E entretanto, a questão do vestuário emerge repetidamente naqueles textos religiosos, seja como uma armadilha, uma obrigação ou um símbolo do sublime. Tanto o Corão quanto as escrituras hebraicas explicam que a necessidade do uso de roupa, no sentido comum, surgiu apenas após um terrível ato intencional que deixou o homem alienado de Deus, subitamente consciente de uma nudez que precisava ser coberta. Após a desobediência de Adão e Eva, como expõe a mais famosa tradução inglesa da Bíblia: "os olhos de ambos se abriram, e ambos perceberam que estavam nus; e ambos juntaram folhas de figo e fizeram para si aventais".

Está também implícito no Corão que o drama e o dilema da desobediência de nossos primeiros ancestrais repetem-se em cada geração subsequente: "Oh filhos de Adão, lhes concedemos roupas para esconder suas partes íntimas e como um adorno. Mas a roupa da virtude, esta é a melhor ... Não deixem Satã tentá-los como fez ao retirar seus pais do Paraíso, despindo-os de suas roupas para revelar suas partes íntimas".

A ideia de que a vestimenta é um presente de Deus, e de que deve ser respeitável e discreta é enfatizada alhures no Corão. As pessoas devem vestir-se de maneira organizada e limpa quando se dirigindo para uma mesquita. Como diz uma tradução: "Oh filhos de Adão, vistam-se elegantemente em cada local de oração ... Quem proibiu as finas roupas de Deus, que Ele costurou para seus servos, ou as as boas coisas que Ele proveu?". A modéstia é requerida para ambos os sexos: "os fiéis devem baixar seus olhos e resguardar suas partes íntimas", e as mulheres em particular devem "cobrir seus bustos com seus véus" e não mostrar sua beleza a não ser para membros próximos de sua família. Este último verso  tem sido interpretado como uma determinação para que as mulheres cubram suas cabeças, embora haja algumas mulheres muçulmanas que discordam disso. Mulheres que  se convertem ao islamismo frequentemente notam que há algo paradoxalmente liberador quanto ao vestir-se modestamente, de um modo consistente com suas crenças, em vez de se sentirem compelidas a impressionar a sociedade ou atrair homens.

Na tradição judáica e cristã, é dito com frequência que, antes de sua desobediência, Adão e Eva estavam vestidos não com roupas comuns mas com uma luz divina que os envolvia completamente. Isso, por sua vez, confere um status especial a roupas que indiquem a renovação daquela luz. Roupas brancas brilhantes, usadas quer por um sacerdote na área mais sagrada do templo de Jerusalém ou por um anjo flutuando sobre um rio na Babilônia, ou por Jesus Cristo aparecendo ante três seguidores em uma luz ofuscante, são um sinal de que aquela luz está novamente fluindo sem empecilhos. Nas páginas finais das escrituras cristãs, a igreja que espera por Deus é comparada a uma noiva "vestida em fino linho, limpo e branco".

Outras roupas e adornos, no contexto cerimonial correto, são mencionados de maneira aprobatória. O alto sacerdote na antiga Jerusalém ostentava 12 pedras preciosas fixadas em uma placa que lhe cobria o peito e que incorporava fios de linho dourado, azul, púrpura, escarlate e branco pálido. Deve ter sido uma visão impressionante. O visual magnífico do rei Salomão é citado com aprovação. Mas, a Bíblia tem coisas duras a dizer sobre aqueles que se vestem e se preparam para produzir uma impressão mundana, como Jezebel, que nos últimos momentos de sua vida "pintou seus olhos, enfeitou sua cabeça e olhou pela janela".

No coração de todas as religiões monoteístas está a ideia de que a adoração de, ou ligação excessiva com, qualquer coisa ou ente que não seja Deus é algo a ser evitado: no melhor dos casos um desvio, na pior hipótese uma idolatria. Aplicando-se este princípio, fica mais fácil entender a aparente inconsistência de atitudes religiosas em relação à roupa, ao vestuário. A vestimenta pode ser uma ajuda ao culto, ou um desvio tolo dele. Mas, certamente, a asneira do "excessivo apego ou ligação" aplica-se não apenas a coisas físicas mas também a regras.  Sentir-se preocupado ou embaraçado com o que as pessoas devem ou não devem usar em determinados locais soa como um desvio que não ajuda em nada. 

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