quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Assim como no Brasil na década de 80, houve esterilização em massa de mulheres no Peru na década de 90

[Traduzo abaixo a reportagem de Boris Miranda no site BBC Mundo (em espanhol) sobre a violência absurda e inadmissível praticada contra centenas de milhares de mulheres no Peru, esterilizadas à força durante o governo de Alberto Fujimori (1990-2000). A esterilização forçada de mulheres, especialmente nas camadas de baixa renda, já foi objeto de grande polêmica no Brasil nos anos 1990 -- ver, por exemplo, "A Esterilização Feminina no Brasil: Diferenciais por Escolaridade e Renda" (Ignez Helena Oliva Perpétuo e Simone Wajnman, Revista Brasileira de Estudos da População, v. 10, n. 1/2, p. 25-39, 1993) -- motivando uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito em 1993 para examinar a "incidência de esterilização em massa de mulheres no Brasil", que produziu um relatório de 141 páginas que concluiu pela confirmação de esterilização em massa de mulheres no Brasil na década de 80, pela existência de financiamento externo para essa campanha, e pela maior incidência de esterilizações em mulheres da raça negra, entre outras conclusões. Observe-se a subjacência dos períodos de esterilização feminina em massa no Brasil (década de 1980) e no Peru (década de 1990). Parece-me oportuno o tema, no momento em que cresce a reação feminina no Brasil às repetidas, absurdas e inaceitáveis agressões por que passam as mulheres em todas as esferas da sociedade e inclusive em legislações idiotas e inaceitáveis que tramitam no Congress0.]


Esperanza Huayama foi enganada e ameaçada antes que lhe fizessem uma ligadura de trompas contra a sua vontade - (Foto: AFP)

Amarraram os pés e as mãos de Rute Zúñiga para que não pudesse se defender. Três enfermeiras e um médico a esterilizaram sem seu consentimento, depois de chantagens e assédios. Na província de Anta, em Cusco, Peru, as autoridades locais a ameaçavam de não registrar sua filha recém-nascida, se não fosse antes ao centro de saúde. "Assim que fui, me fizeram a ligadura", contou Zuñiga à BBC Mundo. 

Seu caso é semelhante ao de centenas de milhares de outras mulheres no Peru que, entre 1990 e 2000, foram submetidas a tratamentos de anticoncepção cirúrgica definitiva em regiões de níveis de pobreza elevados e maioria de população indígena. 

Desde o sábado, 07/11, o caso das esterilizações forçadas foi elevado a "assunto de interesse nacional do Peru" por um decreto do presidente do país, Ollanta Humala. 

A comissão do Congresso peruano que em 2002 investigou os casos de ligadura de trompas concluiu que 314.605 mulheres foram esterilizadas no marco do Programa Nacional de Planejamento Familiar, do governo de Alberto Fujimori.  O Comitê Latino-Americano e do Caribe dos Direitos da Mulher (Cladem, em espanhol) concluiu que somente 10% das mulheres esterilizadas naquele período deram a isso seu "consentimento genuíno". 

Vítimas como Rute Zuñiga responsabilizam o governo de Alberto Fujimori (1990-2000) por esses atos, algo que sempre foi negado pelo ex-chefe de Estado e por seus familiares.

O inferno

Quando Rute chegou ao posto sanitário e viu mulheres desmaiadas no chão, o primeiro que tentou foi fugir. "Umas enfermeiras foram à minha casa me buscar e me levaram em uma ambulância. No quarto, disse que queria ir ao banheiro, numa tentativa de fugir, mas todas éramos vigiadas. Nos puseram um cadeado para que não fugíssemos. Me levaram minha filha. As mulheres tinham medo e choravam", relatou Zuñiga. Como ela, muitas viveram essa história.

Ativistas de direitos humanos e da mulher reclamam uma reparação histórica para as vítimas das esterilizações forçadas - (No mural da parede, na foto: "Meu corpo, meu território. Nunca mais esterilizações forçadas" - (Foto: BBC)

Em 1996, Esperanza Huamaya foi esterilizada enquanto estava grávida de três meses. Teve que lutar para os médicos não lhe fizessem um aborto nesse momento. "Não vão tirar meu filhinho", lhes disse. Se me tirarem meu filho, prefiro morrer. Depois acordei com muita dor. Não podia esticar-me, estava fraca e encolhida. Meu bebê nasceu fraquinho e até adoeceu", relatou ela. 

Esperanza foi enganada. Ela se lembra de que uma "comissão" chegou a Huancabamba, no noroeste do Peru, oferecendo alimentos, vitaminas e medicamentos para mulheres, mas na realidade se  tratava de um grupo para levar mulheres aos centros de saúde. 

Como com Rute Zuñiga, colocaram Esperanza num quarto, no "inferno". "Fizeram o mesmo com muitas senhoras nesse dia. Com cem pelo menos. Nos trataram como animais, uma vez fechado o posto de saúde. Algumas senhoras morreram, outras foram abandonadas pelos maridos", recorda Esperanza.

Os métodos

Investigações e testemunhos recolhidos por organizações como a Anistia Internacional e a Cladem, pelo Congresso peruano e pelos meios de comunicação enumeram os meios de assédio, ameaça ou chantagem empregados pelo pessoal de saúde da época para praticar ligaduras em mulheres peruanas.  Alguns deles foram:

● Chantagear mães que recém deram à luz, ameaçando-as de não efetuar o registro civil de seus filhos.

● Ameaças de fazer aborto em mulheres grávidas que não aceitassem ser esterilizadas.

● Pressão psicológica com argumentos sobre a irresponsabilidade ou a instabilidade econômica dos maridos, para que as mulheres optassem pela anticoncepção cirúrgica. 

● Visitas de enfermeiras, casa por casa, que ameaçavam voltar "com a polícia" se as mulheres não aceitassem ir ao centro de saúde.

● Festivais e campanhas destinados a convencer as mulheres de que o melhor método de anticoncepção é a ligadura de trompas, em vez de outras formas de planejamento familiar não definitivas.

● Rondas de ambulâncias, casa por casa, para apanhar mulheres.

● Pagamento de "incentivos" econômicos aos maridos para que assinassem uma autorização para que suas mulheres fossem submetidas a uma esterilização "voluntária".

● Oferta de alimentos e medicamentos como instrumentos para atrair mulheres de poucos recursos, ou com necessidades urgentes. 

● Uso da força física para levar as mulheres aos centros de saúde.

Relatos da imprensa da época e o informe do Congresso de 2002 concluíram que nesse período se estabeleceram "metas numéricas" e incentivos, a partir dos altos níveis do Estado peruano, para a prática de esterilizações.

Assunto de interesse nacional

Rute Zuñiga agora é presidente da Associação de Mulheres Afetadas pelas Esterilizações Forçadas, e ainda se lembra daquela tarde há quase 20 anos atrás em que despertou no chão depois da intervenção cirúrgica a que havia sido submetida. "Nós pedimos justiça e reparação. Muitas mulheres ficaram marginalizadas na sociedade, sem possibilidade de trabalhar nem de receber atenção médica desde então", assinala ela para a BBC Mundo. 

Ao mesmo tempo, a deputada Hilaria Supa registra que as vítimas dos programas de esterilização da última década do século XX "devem receber uma reparação do sistema de saúde do Peru". "Elas têm sofrido discriminação nos hospitais desde então e precisam ter acesso a programas de saúde clínica e de saúde mental", destacou a deputada para a BBC Mundo.

A parlamentar explicou que, depois do decreto aprovado no fim de semana, o passo seguinte será a elaboração de uma regulamentação que ponha em marcha instâncias de investigação e de apoio às vítimas. 

O vice-ministro de Direitos Humanos e Acesso à Justiça do Peru, Ernesto Lechuga, assinalou que se se chegar a determinar alguma responsabilidade do Estado isso "terá que ser assumido".  Para tanto, o governo abriu postos em todos os distritos peruanos para cadastrar as pessoas que sofreram intervenções cirúrgicas de anticoncepção forçada.

Zuñiga e Supa comemoram que agora as esterilizações forçadas  da década dos 90 sejam assunto de interesse nacional no Peru, mas essa iniciativa gera também o rechaço de alguns setores da sociedade.

Keiko Fujimori, uma das candidatas favoritas para a futura eleição presidencial do Peru e filha de Alberto Fujimori, assinalou que "há responsabilidades pessoais nos médicos que não respeitaram seus protocolos", e insistiu em que no mandato de seu pai não foram ordenadas esterilizações forçadas. "Aquelas que sofreram danos têm que que receber uma reparação do Estado. Mas, como mulher, creio também que temos o direito a  ter a informação de decidir quando e quantos filhos teremos", concluiu. 

Keiko Fujimori rechaçou que o governo de seu pai tenha ordenado as esterilizações forçadas da década de 90 - (Foto: Getty)

Em 2014, um fiscal não encontrou indícios de culpabilidade de Alberto Fujimori pelas esterilizações, conclusão condenada pelas vítimas e por organizações de direitos humanos e da mulher. 

Para Zuñiga, um dos "primeiros passos" é o fato recente de que o Estado comece a reconhecer a responsabilidade pelo que ocorreu com ela e com centenas de milhares de mulheres. "O mundo tem que conhecer o que se passou, para que isso não ocorra nunca mais".  




Um comentário:

  1. A demografia ainda não mostrou pra valer seu peso na equação da sobrevivência da espécie no planeta. Quando mostrá-lo em toda crueza, talvez seja tarde para dominá-lo. Após 200 mil anos do Sapiens surgir aqui, chegou a um bilhão de pessoas. Hoje, bastam doze anos pra somar novo contingente de um bi! E quanto mais gente trabalhando pela reprodução, menor esse intervalo. O que fazer? Curvar-se ao sentimentalismo ou aceitar um remédio amargo? Como suprir a demanda crescente de alimentos e ganha pão quando as terras agricultáveis tendem a reduzir-se e a água, essencial pra agricultura, a escassear?
    É sabido que os Sapiens priorizam suas conveniência e de seu grupo familiar à da espécie como um todo, logo, cabe a instituições a penosa tarefa de equilibrar essa terrível equação. Que os deuses iluminem as cabeças encarregadas disso.

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