segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Ecos dos atentados de Paris (I)

Por infeliz coincidência, minha mulher e eu chegamos a Paris na manhã da sexta-feira 13 de novembro, dia em que ocorreram os terríveis atentados na cidade que deixaram 130 mortos e 300 feridos. Por outro lado, tivemos a sorte de nos hospedarmos no 6° distrito (arrondissement), que permaneceu uma ilha de tranquilidade nas duas semanas em que lá estivemos. Ainda nos refazendo do cansaço da viagem, fomos alertados sobre os atentados no próprio dia 13 por mensagens de parentes e amigos no Brasil e passamos a acompanhar os acontecimentos pela TV e pelos jornais franceses.

Ainda profundamente traumatizada pela barbárie do ocorrido, a França permanece absolutamente perturbada, confusa e preocupada com pelo menos dois aspectos: i) a presença, entre os terroristas, de cidadãos franceses nascidos e educados na França; - ii) como e porquê o país permitiu que essas tragédias ocorressem depois dos atentados de janeiro deste ano, em que morreram 12 pessoas na redação do jornal satírico Charlie Hebdo e 4 pessoas num supermercado de produtos para judeus.

A primeira das duas questões acima produz extrema inquietação na França, porque explicita uma enorme falha no sistema de educação  e integração de jovens, em sua esmagadora maioria de origem árabe. A rejeição violenta  dos valores franceses por esses jovens intriga e assusta o país. Esse fato fez ressurgirem velhos fantasmas franceses, que atestam a indiscutível discriminação sofrida por minorias étnicas no país, com destaque para as comunidades de origem árabe. Essa discriminação tem gerado inconformismo e radicalização entre os discriminados, um caldo de cultura perfeito para que grupos terroristas como o Estado Islâmico atraiam jovens desiludidos e inconformados e os transformem em militantes.

Na semana anterior à dos atentados em Paris o canal GNT brasileiro apresentou um documentário impressionante e assustador sobre o forte e insistente trabalho de aliciamento do Estado Islâmico (EI) sobre jovens franceses. A quantidade desses jovens que decide aderir ao EI e se deslocar para a Síria, por exemplo, é mais alta do que se pensa e é angustiante, para dizer o mínimo.

No dia 24 de novembro o jornal francês Le Figaro publicou uma reportagem de uma página sobre Saint-Denis, a cidade-bairro francesa ao norte de Paris com mais de 100 mil habitantes que foi alvo de uma ação policial antiterrorista de uma violência "incrível" (segundo o Le Figaro) dois ou três dias após os atentados de sexta-feira. Nessa incursão policial morreram três terroristas, incluindo Abdelhamid Abaaoud -- de cidadania belgo-marroquina, considerado o mentor dos atentados -- e Hasna Alt Boulahcen, uma francesa de 26 anos que seria sobrinha de Abaaoud e detonou o coletivo explosivo que vestia quando os policiais invadiram o apartamento em que estava com os outros dois terroristas.

A reportagem do Le Figaro mostra que Saint-Denis é um poço de problemas e uma bomba-relógio, "a algumas dezenas de metros da necrópole dos reis da França".  Jovens de 20 anos se cumprimentam com "Salam alaykoum" ("que a paz esteja convosco") em vez de "Bonjour", se vestem com suas roupas tradicionais, cada vez mais meninas e moças usam véus (algumas com vestimentas que só deixam livres os olhos), os restaurantes (incluindo os de fast food) só servem comidas típicas, há salas de ginástica exclusivamente para mulheres, salões de cabeleireiros com salas reservadas para mulheres que usam véu, e outros detalhes que assemelham a cidade-bairro a um gueto.

Um universitário argelino, residente em Saint-Denis há vinte anos, denunciou em uma revista local que a mesquita do Centro Tawhid "é o vetor principal da ideologização  do Islã e do proselitismo concebido pela Irmandade Muçulmana". Um político de direita, Stanislas Francina, diz que se trata de uma "mesquita bastante radical, que se esconde atrás de todos os tipos de ações sociais". Nas livrarias locais pode-se comprar quebra-cabeças para crianças sobre os cinco pilares do islamismo ou posters que lhes ensinam as boas práticas dessa religião: obedecer aos pais, dormir sobre o lado direito, beber em três goles, ... O laicismo do Estado, uma questão de honra para os franceses, praticamente inexiste em Saint-Denis.

Mas, mais do que esse "comunitarismo", o que mais preocupa os habitantes de Saint-Denis é o coquetel de agressões, roubos e tiroteios que domina o centro da cidade. "Há tiroteio quase todas as noites", diz Alain Lenglimé, um artesão aposentado que vive ali há quarenta anos. Isso é tão comum, que os moradores acharam que o tiroteio da polícia quando da invasão do apartamento terrorista era apenas mais um na sua rotina de violências.

Apesar de ter ganho 24.000 habitantes em quinze anos, chegando hoje a 110.000, a cidade não ganhou nenhum policial nesse período. "Se tivéssemos o mesmo índice de policiais por habitante do 18° distrito de Paris, deveríamos ter 500 policiais e não os 300 atuais", afirma Stéphane Peu, "tanto quanto Marselha, temos o maior número de delitos por habitante! Justiça, Educação nacional, polícia -- estamos no vermelho nessas três áreas".  Uma criança em Saint-Denis acumula o equivalente a um ano sem professor na escola primária, por falta de substitutos. "As pessoas se sentem abandonadas pelos poderes públicos, exasperadas pela defasagem entre as palavras sobre o apartheid de Manuel Vals [primeiro-ministro] e os atos".

"As pessoas aqui são pouco producentes. No verão, as crianças ficam nas ruas até às 23h", diz Hawa, uma nativa muçulmana do Mali doutoranda na Universidade Paris-VIII. "Sem projetos, essas pessoas podem se radicalizar porque não têm o que fazer da vida. Elas têm uma lógica quase suicida", se inquieta essa universitária. "O islamismo radical pode parecer-lhes uma solução ...".

Saint-Denis não é um caso isolado na França (digo eu e não o Le Figaro). A partir do que ali acontece, não dá para entender porque tanta perplexidade dos franceses diante da existência de terroristas de nacionalidade francesa.

(cont.)

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