quarta-feira, 8 de julho de 2015

Grécia, o Davi malandro que deixou grogue o Golias União Europeia

O povo grego respondeu "não" ao referendo sobre as condições de empréstimo que lhe foram impostas pela troika [Banco Central Europeu (BCE), FMI e Comissão Europeia (CE)] e deixou a União Europeia com cara de tacho e calças nas mãos. Esse ainda não é o ato final da certamente mais longa tragédia grega da história, com início em 1 de janeiro de 1981, data da adesão da Grécia à União Europeia, que na época chamava-se Comunidade Econômica Europeia. Trata-se pois de uma crônica de coma -- ou morte? -- anunciada há 34 anos. 

O fato de um país cuja economia mal chega a 2% do bloco da UE (União Europeia) conseguir abalar esse gigante econômico é um inequívoco indício de algo muito errado. Em uma série de três postagens em 2012 ("Documentos alemães recentemente revelados mostram falhas na criação do euro") relatei a enorme responsabilidade da Alemanha nos problemas hoje encontrados pelo euro, originários de um projeto equivocado, de regras frouxas, de união entre países muito díspares.

A história da adesão da Grécia à UE não é nada edificante. Os gregos trapacearam para entrar no bloco, maquiando os dados sobre seu déficit e suas contas públicas. Os países fundadores da UE, no afã de aumentar o grupo quantitativamente (mas não necessariamente do ponto de vista qualificativo) comeram mosca ou fizeram vista grossa às pedaladas dos helenos. Os romanos consideravam os gregos o símbolo da deslealdade, por não manterem a palavra dada -- criaram até expressões para caracterizar esse traço dos helenos (ver postagem anterior, na letra "G"). Sábios romanos!

Mesmo depois de entrar na UE, a Grécia manteve sua longa tradição de corrupção e sonegação crônica de impostos (ver postagem "A hipocrisia da Grécia"). O caso mais emblemático do mau comportamento grego é o da ilha paradisíaca de Zakynthos, em que cerca de 2% da população (de 39.000 pessoas) era oficialmente cegaPelo menos até que os auditores descobrissem que tudo não passava de uma fraude cometida em conjunto por famílias, médicos e prefeitura para permitir que cada "cego" recebesse uma compensação extra do Estado de € 380 por mês, o mesmo valor da aposentadoria de muitos na ilha. Médicos concordavam em dar atestados de cegueira, em troca de propinas por parte dos clientes. Até 2012 essa trapaça havia custado 2 milhões de euros ao país.

Não deixe de ler: Os inacreditáveis talentos gregos

O imbróglio do sai-ou-fica da Grécia na UE é um festival de erros de todos os lados, mas o que fica claro é que os gregos têm se mostrado mais espertos e malandros e conseguiram se transformar em "vítimas" da "chantagem" da UE. Tem até Prêmio Nobel de Economia defendendo a Grécia e esculhambando a União Europeia, o que acho um exagero inacreditável.  

O referendo grego, cujo custo estimado pelo Ministério do Interior do país seria no máximo 25 milhões de euros, foi bem um retrato da malandragem grega personificada pelo primeiro-ministro Alexis Tsipras. Aliás,os gregos começaram a arquitetar sua estratégia de chantagear a UE quando ocorreu o resgate financeiro concedido pela troika à Espanha em 2012. Aí começou a se configurar a vitória do partido radical de esquerda Suriza, que levaria Alexis Tsipras ao poder. O Syriza disse na ocasião ao jornal britânico The Independent que o acordo de resgate financeiro à Espanha havia fortalecido o poder de barganha da Grécia e, pelo visto, a UE não prestou muita atenção nesse comentário. 

O referendo foi planejado para dar vitória ao "não" defendido por Alexis Tsipras, e assim aumentar o poder de chantagem da Grécia sobre a UE. Basta dar uma olhada na pergunta apresentada aos gregos no referendo:  "Você aceita o projeto de acordo submetido pela Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional na reunião do Eurogrupo do dia 25 de junho de 2015, composto de duas partes e que constitui uma proposta unificada?". Substitua "acordo" por "ajuste fiscal", troque os nomes da troika por "governo federal", faça  mais um ajustezinho no palavreado e imagine isso apresentado ao povo brasileiro em um referendo ...

Os dois documentos ou partes referidos na pergunta aos gregos são: "Reformas para a conclusão do atual programa e sua continuação" e "Análise preliminar de sustentabilidade da dívida". Simples, não?... Quantos gregos terão lido esses documentos antes de decidir e, entre os que o fizeram, quem realmente entendeu o que leu? As entrevistas com cidadãos gregos em canais de TV daqui e do exterior mostraram o nível de confusão reinante entre os gregos sobre o  que  e como votar no referendo.

O jornal português Diário de Notícias (DN) apresentou no dia 4 de julho corrente (véspera da consulta pública grega) uma análise interessante e muito pertinente do referendo grego, feita por Alexander H. Trechsel, professor de Ciência Política do Instituto Universitário de Florença. Reproduzo a seguir suas partes principais.

"Parece que agora cabe a uma maioria de cidadãos gregos decidir sobre o destino do seu país, presumivelmente numa votação binária de sim ou não, sobre uma pergunta que ainda tem de ser formulada e uma oferta que pode já ter expirado no momento em que a votação tiver lugar (o destaque é meu e não do DN).

À primeira vista parece ser um processo digno para o país onde, afinal, foi inventada a democracia. Contudo, uma análise mais cuidadosa revela uma imagem bastante menos gloriosa. A verdade é que há quatro problemas fundamentais que podem ter origem no "veredito popular" proposto.

Em primeiro lugar, a Grécia moderna não tem qualquer experiência de referendos. A última vez que os eleitores gregos foram chamados a manifestar-se em votações que não eleições foi há mais de 40 anos, em 1974, quando o país fez a transição para a democracia e quando uma maioria popular decidiu que preferia uma República e não uma Monarquia para a sua futura forma de governo. 

Desde então, e contrariamente à maior parte dos outros países da Europa, a democracia direta a nível nacional manteve-se inexistente. Foi apenas com a crise económica e a confrontação com os credores sobre o resgate em 2011 que o então primeiro-ministro George Papandreou tirou do chapéu a ameaça do referendo. No seu ponto de vista, os credores seriam simplesmente obrigados a respeitar a vontade do povo grego. As coisas não foram tão longe - Papandreou teve de demitir-se antes de o referendo se realizar. Hoje, essa mesma ameaça de referendo é mais uma vez feita por Alexis Tsipras, mais concretamente contudo, com uma data marcada para amanhã, 5 de julho. Em menos de uma semana espera-se que um povo que não faz uma escolha de sim ou não há mais de 40 anos "decida" sobre o futuro do seu país.

Em nenhum outro processo moderno de democracia direta é dado tão pouco tempo aos cidadãos para reunirem e processarem a necessária informação sobre a proposta em jogo, para a debaterem e assim ser possível emergir uma opinião pública informada, muito menos para tomarem uma decisão de tão longo alcance. E essas são condições necessárias, embora não suficientes, para que um processo de referendo seja verdadeiramente democrático. Hoje mesmo, isto foi afirmado em Estrasburgo pelo secretário-geral do Conselho da Europa.

Em segundo lugar, os cidadãos gregos são chamados a votar a favor ou contra uma oferta de um conjunto de atores externos para manter o país solvente e dar um impulso financeiro à sua economia através de futuros investimentos. O que está em jogo não é, portanto, sequer um acordo entre o governo grego e, digamos, outro governo ou uma organização internacional, mas simplesmente um plano decidido fora e independentemente da Grécia. Isso é muito diferente de referendos sobre tratados internacionais, como os que existem na Suíça, na Irlanda ou na Dinamarca, nos quais os governos respetivos defendem os acordos negociados e fazem campanha a favor destes.

Contudo, nos próximos dias os atores principais que defendem o sim no referendo grego serão ou credores estrangeiros ou, talvez, a oposição grega. Isto, por sua vez, vai resultar numa campanha de "eles" contra "nós", que irá dar os trunfos aos argumentos nacionalistas em lugar de a uma discussão séria dos prós e dos contras da oferta proposta - o que dificilmente serão os ingredientes para uma decisão madura e democrática nas cabinas de voto.

Em terceiro lugar, o referendo irá misturar a democracia direta com a democracia representativa. Imaginemos que sai um sim das urnas. Num tal cenário o governo de Alexis Tsipras terá possivelmente de se demitir e terão de ser convocadas novas eleições. E se os votantes gregos disserem não? Neste caso, não só o país irá muito provavelmente para a bancarrota, como isso levará à saída da Grécia do euro. 

As consequências para o povo grego seriam devastadoras e o destino de um governo que tivesse conduzido a campanha ativamente para este resultado poderia ficar rapidamente selado. Por outras palavras: seja qual for a escolha dos eleitores, ela será tanto uma escolha sobre política como sobre o próprio governo. E o processo poderá muito bem acabar com um gol na própria baliza [o "gol contra" de nós, brasileiros], semelhante ao "suicídio por referendo" cometido por Pinochet no Chile e por De Gaulle em França. Para os eleitores, no entanto, isto não torna as coisas mais fáceis, pois eles estarão a votar tanto no plano para salvar a Grécia da insolvência como no governo de Alexis Tsipras.

Em quarto lugar, e este é possivelmente o aspecto pior de todo o drama, convocar este referendo é uma tentativa desesperada de passar a responsabilidade governamental para o povo como um todo. Eis um governo que é incapaz de alcançar um acordo com os credores para salvar o seu país do caos. Em vez de ficar na história como um fracasso político, este governo passa agora o fardo para os cidadãos na esperança de que estes adiram ao tema do "nós" e do "eles" juntamente com os seus representantes.

Embora a ameaça de um referendo possa ser uma ferramenta poderosa durante as negociações, uma vez as cartas na mesa não serve outro propósito que não o de deixar que um governo se esconda atrás de uma alegada vontade popular, forjada em pouquíssimo tempo e num clima quente de acusações nacionalistas.

Não ser capaz de alcançar um acordo nas negociações pode ser visto como um fracasso, no entanto, culpar o seu próprio povo pelo resultado, porque foi a sua "escolha" nas urnas, pode ser visto como simples covardia. A única conclusão que se pode tirar destas observações é que amanhã os votantes gregos não devem ser chamados às urnas. Por respeito democrático pelos seus cidadãos o governo de Atenas deve cancelar este referendo sórdido - quanto mais cedo, melhor".

Contrariamente ao sugerido pelo professor no texto acima, o referendo se realizou e o "não"foi o vencedor. Agora, a União Europeia (UE) e o mundo estão em suspense, aguardando qual a melhor solução para sair dessas embrulhada. Nesse imbróglio não há santinhos, todo mundo tem culpa no cartório, telhado de vidro e rabo preso. Desse imbróglio só surgirão perdedores.

A Grécia nunca tentou p'ra valer se enquadrar nas normas e regras da UE (por sinal frouxas, como hoje comprovado) -- suas pedaladas para ganhar o green card europeu evidenciaram sua má-fé, e mostraram que ela iria manter sua tradição de corrupção e sonegação fiscal. Os gregos estão colhendo o que semearam, isto é claro e inquestionável a meu ver.  A UE fez também um monte de erros e trapalhadas nessa história, tem que se coordenar com um estranho no ninho que é o FMI (cujos interesses e compromissos vão muito além daqueles da zona do euro, envolvendo o principal competidor do bloco que são os EUA), e está se mostrando absolutamente confusa e desnorteada para resolver sua efetivamente primeira grave crise. Se analisarmos a participação das principais economias do mundo no FMI em termos de DES - Direito Especial de Saque (SDR, na sigla inglesa), veremos que os EUA têm 17,68% dos DES e 16,74% do poder de voto no Fundo. Para se ter uma ideia do peso dos EUA no FMI, basta ver que Alemanha, França, Reino Unido e Itália somados têm 18,45% dos DES e 17,55% do poder de voto. Não é preciso ter imaginação muito fértil para perceber o enorme interesse e/ou vantagem para os americanos uma Europa atolada em problemas políticos e financeiros. Qualquer ajudazinha consciente ou inconsciente do FMI para isso é mais do que bem-vinda para Tio Sam.  E a grande ironia é que a grande pedra no seu sapato da UE é um país que contribui apenas com 2% para a força econômica do bloco.

A crise grega desnudou os problemas e falhas da criação da UE e do euro, e é sintomático que o principal algoz e maior credor da Grécia seja a Alemanha, considerada a principal responsável por esses problemas e falhas, como dito no início desta postagem. Atuar com pieguice ou excesso de sentimentalismo agora com a Grécia é escancarar a porteira da UE para uma manada de novos e piores problemas, com efeito dominó para dentro e fora do bloco. O momento é de reflexão e seriedade, para gregos e troianos. A UE tem que aproveitar essa crise e consertar de vez os sérios problemas de governança e controle do bloco. A Grécia tem que abandonar esse papel de eterna vítima, escolher melhor seus oráculos, cumprir o que promete ou então jogar a toalha e voltar para seu dracma. Aí, só terá que mudar um pouco o cenário -- a tragédia terá roteiro mais pesado, os atores serão praticamente os mesmos.

O verbete "grécia" permite acesso a várias postagens sobre a crise grega no blogue.


4 comentários:

  1. Eliana França Leme8 de julho de 2015 às 21:16

    Muito boa análise e bastante abrangente. Parabéns!

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  2. Bom Lero,

    Excelente !! Excelente!! Análise apuradíssima e realista.
    Peço sua autorização para reproduzir seu artigo no meu blog, citando a fonte.
    Blog: ADAIROSEMBAK.BLOGSPOT.COM.BR

    Antecipadamente grato

    Adaí Rosembak
    adbak@uol.com.br

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  3. Caro Vasco Costa,

    Excelente Análise !!
    Precisa, objetiva e realista.
    Peço permissão para reprodução em meu blog citando a fonte.
    Blog ADAIROSEMBAK.BLOGSPOT.COM.BR
    Antecipadamente grato

    Adaí Rosembak
    adbak@uol.com.br

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  4. Recebi por email de Amaury Frossard Ribeiro em 09/7/15:

    Este blog poderia referir-se ao brasileiro. Afinal, o comportamento dos gregos não me parece tão diferente do nosso.

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