quinta-feira, 25 de setembro de 2014

São legais os bombardeios aos extremistas do Estado Islâmico?

[O artigo traduzido abaixo, de autoria de Marc Weller, foi publicado no site BBC Mundo. Marc Weller é professor de Direito Internacional na Universidade de Cambridge e diretor do Centro Lautperpacht para o Direito Internacional. É editor do Oxford University Press Handbook sobre o Uso da Força no Direito Internacional, que será publicado em novembro. Não podemos ficar alheios ao que ocorre no Oriente Médio, ali pode estar o estopim de uma nova guerra de proporções gigantescas. O texto é oportuno, porque Dilma NPS (Nosso Pinóquio de Saia) acaba de se pronunciar em Nova Iorque colocando o Brasil contra os bombardeios pelos EUA e outros na Síria. Pessoalmente, acho essa discussão como a do sexo dos anjos -- os EUA et caterva estão se lixando para o direito internacional quando se trata de defender seus interesses. Quanto à psicose do "diálogo" de Dilma NPS, gostaria de ver sua disposição para isso se marginais (= terroristas urbanos) atacassem sistematicamente sua casa e seus bens por dias ou meses seguidos.]



A ação militar dos países aliados poderia justificar-se sob o argumento de uma ação humanitária em caso extremo - (Foto: EPA/Fonte: BBC Mundo).

A série de ataques dos Estados Unidos e dos estados árabes aliados contra posições controladas pelo grupo radical autodenominado Estado Islâmico (EI) na Síria e no Iraque levantou uma série de questionamentos sobre a legalidade de tais ações, à luz do direito internacional.

A avaliação legal difere quando se trata das operações contra o EI no Iraque e as realizadas na Síria.

O governo do Iraque convidou as forças internacionais a se unirem a ele na luta contra o EI. Em consequência disso, enquanto a campanha militar se mantiver em território iraquiano pode que não seja necessário guiar-se pelo direito internacional de autodefesa coletiva. No exercício de seus direitos constitucionais, o governo do Iraque pode empregar a força militar internamente para derrotar um movimento armado que se impôs violentamente sobre uma parte importante de seu território. 

Também é certo que um governo perde seu direito de solicitar ajuda militar internacional na zona em que haja perdido controle sobre partes significativas de sua população e de seu território devido a um levantamento popular contra sua autoridade. Um governo sem o respaldo de seu próprio povo não tem direito a manter-se no poder graças a uma intervenção militar externa. Por exemplo, a solicitação no início do ano de intervenção de tropas russas feita pelo presidente da Ucrânia, Víctor Yanukovych não contou com sustento legal porquanto se produziu depois que ele havia perdido o poder de representar o Estado após produzir-se a insurreição contra seu mandato.

Do mesmo modo, o Ocidente criticou Moscou pelo contínuo envio de suprimentos ao presidente da Síria, Bashar al Assad, durante o conflito atual com a oposição armada. 

O Irã recebeu também condenações do Ocidente, pelo envio de forças armadas que tiveram um papel central na alteração do equilíbrio militar a favor do governo de Damasco. 

Isso é muito diferente do que ocorre no Iraque. O EI é um movimento sectário que se impôs sobre uma parte de um Estado através de uma campanha militar. Se tem dito que ele mantém controle sobre populações por meio do terror, de deslocamentos forçados e de assassinatos. O EI é acusado de privar os habitantes das áreas que controla dos direitos humanos consagrados internacional e constitucionalmente. 

O governo do Iraque foi recentemente reconstituído, e um de seus objetivos declarados é o de assegurar representação a todos os setores da sociedade (sunitas, xiitas e curdos). Sua legitimidade não foi posta em dúvida pelo êxito militar do EI. O novo governo está obrigado a tentar preservar a promessa constitucional de garantir os direitos humanos e defender a população frente ao EI. Portanto, pode receber qualquer tipo de apoio internacional que solicitar. Conquanto o governo de Bagdá o aprove, essa assistência pode dirigir-se também às forças peshmerga curdas no norte do Iraque, que têm desempenhado um papel chave na campanha contra o EI até o momento.

Autodefesa?

A situação das operações internacionais contra o EI na Síria é mais complexa. O governo sírio não deu consentimento formal a esse tipo de operações e, se chegasse a fazê-lo, sua boa-fé pode ser questionada. Em câmbio, o presidente Assad -- apoiado pela Rússia -- assegurou que tais ações constituem uma flagrante violação ao direito internacional.

Enquanto muitos estados, incluindo o Reino Unido, consideram a opositora Coalizão Nacional como a "legítima representação do povo sírio", esses estados ainda não a reconheceram como sendo o governo sírio. A coalizão não teria autoridade para consentir a realização de operações militares estrangeiras em solo sírio. Um argumento de maior êxito pode ser relacionar qualquer ação na Síria com o objetivo principal de apoiar o governo de Bagdá na sua campanha para liberar seu próprio território. 

O antecedente da Nicarágua

Se tem dito que não é possível derrotar o EI no Iraque a menos que se ataque a infraestrutura que suporta sua ocupação do território iraquiano, que se encontra assentada em ambos os lados da fronteira. 

De acordo com o estabelecido pela Corte Internacional de Justiça no caso da Nicarágua de 1986, no qual os Estados Unidos foram considerados culpados de violar a lei internacional ao apoiarem os rebeldes armados dos Contras, o argumento da autodefesa só pode ser invocado pelo Iraque contra a Síria se o Estado Islâmico atuar como um agente direto de Damasco e sob seu controle operativo. Mas, esse não é o caso. Na realidade, o governo sírio perdeu todo o controle sobre as zonas de seu país que estão em mãos do EI. Ainda mais, até há não muito tempo, não havia feito tentativas para desalojá-lo, deixando essa tarefa por conta dos grupos armados da oposição.

Damasco é abertamente incapaz ou não está disposta a delegar sua obrigação de prevenir as operações do EI contra o Iraque a partir de seu próprio território. Mas, este fato não implica que o Iraque deva assumir o custo dessa inação na hora de conter o EI em seu solo. Sob a doutrina da autodefesa, a zona de operações da campanha para derrotar o EI no Iraque pode ser estendida para cobrir partes da Síria fora do controle do governo sírio. 

Uma segunda linha de argumentação pode vincular-se a um chamado à autodefesa feito pelas próprias nações intervenientes. Os EUA e o Reino Unido podem argumentar que o EI representa uma ameaça à sua própria segurança. Entretanto, de acordo com o Artigo 51 do Capítulo das Nações Unidas a autodefesa só se aplica a ataques atuais ou iminentes e não a agressões possíveis ou potenciais.

O 11 de setembro

Com base nos eventos de 11 de setembro de 2001 e da perda de vivas e da destruição que originaram, houve a aceitação de que a ação de um grupo beligerante -- não necessariamente um estado -- pode ser considerada como um "ataque armado", segundo a definição do  Artigo 51.

Os EUA invocaram a autodefesa com relação às suas próprias forças baseadas em Erbil, no Iraque, quando elas foram ameaçadas por um avanço do EI. 

Entretanto, não há esse tipo de força em desdobramento na Síria.



As perdas de vidas e materiais durante os atentados de 11 de setembro alteraram a noção de autodefesa - (Foto: Getty/Fonte: BBC Mundo).

Seria mais difícil assinalar o risco de um ato terrorista específico ou iminente contra os EUA ou o Reino Unido proveniente do EI na Síria.

Os assassinatos recentes de reféns ocidentais provocam indignação, e as ações de resgate voltadas para sua libertação são claramente legais. Não obstante, uma agressão a indivíduos capturados, apesar do horrenda que possa ser, não é considerada legalmente um ataque armado contra seu países de origem e não justifica invocar o direito de autodefesa. 

Pode-se discutir que o EI representa uma clara ameaça de terrorismo, dadas a virulência de sua ideologia antiocidental e sua capacidade de planejar operações a partir dos territórios que ocupa. Essa visão forçaria a adoção do conceito tradicional de autodefesa.

No entanto, na reunião de cúpula de 5 de setembro em Gales a Otan -- uma aliança para operações defensivas emoldurada no Artigo 51 -- declarou com referência ao EI que "se a segurança de algum dos aliados se vir ameaçada não duvidaremos em tomar todos os passos necessários para assegurar nossa autodefesa coletiva". 

Entretanto, o argumento da autodefesa pode ser fortalecido pela cooperação de nações chaves na região para operações contra a Síria. Jordânia, outro vizinho imediato, denunciou incidentes que envolvem o EI em sua fronteira, e reivindica seu direito a assegurar sua própria segurança.  Apesar disso, no sentido mais restrito, o direito à autodefesa se limita ao que faça falta para frear um ataque armado em curso ou iminente do EI contra seus vizinhos. Contudo, a Jordânia poderia ao menos assinalar a série de incursões e ataques [do EI] e teria que argumentar que essas ações só podem ser detidas se o EI for derrotado na Síria.  

Intervenção humanitária

Finalmente, é possível também fundamentar um chamado à ação devido às ações do EI na Síria. O governo sírio está obrigado a proteger sua população de crimes contra a humanidade cometidos em seu território. Inequivocamente, não está em condições de fazê-lo dado que perdeu o controle das áreas ocupadas pelo EI. 

É por isso que a ação internacional pode adaptar a doutrina de intervenção humanitária para libertar a população atemorizada pelo cerco do movimento extremista. A ação da força por motivos humanitários foi empregada em mais de 20 casos desde o fim da Guerra Fria.

Ações humanitárias unilaterais?

Cabe destacar que, na maioria dessas experiências, um mandato das Nações Unidas ofereceu uma justificativa jurídica para o que se fez. Vista a situação atual, na presente circunstância seria bastante provável um veto da Rússia. 

As ações humanitárias unilaterais seguem sendo debatidas entre nações e acadêmicos. Entretanto, a prioridade dos direitos das pessoas sobre doutrinas abstratas de soberania torna possível justificar-se uma ação em circunstâncias extremas de necessidade humana. Neste momento, apesar da série de severas violações de direitos humanos, não está totalmente claro se se chegou a esse ponto. 

A situação da população local

Relatórios sobre um preocupante aumento de refugiados chegando à Turquia e outros países vizinhos, provenientes de áreas controladas pelo EI, sugerem que possa apresentar-se um caso de extrema necessidade humanitária nas próximas semanas. Em todo caso, atingido esse ponto estaria em discussão a motivação dos estados interventores. 

Pareceria que o interesse atual dessas nações se fundamenta mais na segurança regional e em sua própria segurança, frente a ameaças do EI, do que em aliviar o sofrimento da população local. Tampouco está claro quem ocuparia o lugar do EI se este grupo for forçado a sair do território sírio: seria o governo, a oposição ou inclusive uma força internacional por um curto período?

Tal como foi o caso com o mandato da ONU para proteger a população líbia da carnificina desatada por Muamar Gadafi em 2011, o tema se veria mesclado com a crescente campanha "por uma mudança de regime" na Síria. 

Em resumo, sem formar uma aliança incômoda com o governo Assad, o argumento mais sólido para respaldar uma ação contra o EI na Síria é fazê-la complementar à atual campanha no Iraque. Isso poderia estender-se a outras nações afetadas, como a Jordânia. 

Perigo de extermínio



A doutrina não está clara em casos como o do EI - (Foto: AP/Fonte: BBC Mundo).

O teatro de operações pode estender-se a outras partes da Síria, tanto quanto seja estritamente necessário para concluir a campanha com êxito. A autodefesa por parte das nações que intervierem irá exigir uma definição mais ampla do que é uma ameaça iminente de operações terroristas originárias do EI na Síria, e de maiores ataques contra eles. 

Como alternativa, podem ser empreendidas ações em representação do povo sírio que se encontra em poder do EI, sempre e quando essas pessoas estejam em perigo iminente de extermínio ou de serem deslocados em massa pela força. Seria possível também uma ação se se produzir uma violação de seus direitos humanos mais fundamentais de maneira clara e contínua, conformando um crime maciço contra a humanidade.

No entanto, seria difícil que uma ação por motivos humanitários  ficasse limitada àquelas zonas sob o controle do EI. Seria necessária então uma alternativa de maior envergadura para garantir a solução do conflito na Síria.

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