domingo, 20 de novembro de 2016

As Belas Artes na Medicina (II) -- a arte de Frida Kahlo reflete seus vários problemas físicos e psicológicos

[Ver postagem anterior. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]

Frida Kahlo: trajetória marcada por doenças



Magdalena Carmen Frida Kahlo y Calderón (1907-1954) - (Foto: Google) - Obs.: esta foto não consta do livro que usei como referência para esta postagem.

(...) Aos seis anos de idade, Frida contraiu poliomielite. A doença deixou como marcas o membro inferior direito mais curto e a musculatura atrofiada. (...)

Quando Frida tinha 18 anos, o ônibus no qual ela viajava chocou-se com um bonde. Em consequência da gravidade do acidente, em que várias pessoas morreram, ela sofreu fraturas em três vértebras, fragmentação da tíbia e fíbula direitas, além de três fraturas da bacia. Quando ainda estava convalescendo das múltiplas fraturas sofridas no acidente de ônibus, Frida fez em seu diário uma aquarela retratando sua visão do acidente.


Frida Kahlo (1907-1954) - Acidente (1926), gravura a lápis - (Foto: Portal Médico)

Por conta da fratura de bacia, Frida foi informada de que não poderia ter filhos de parto normal, e era recomendável portanto que evitasse engravidar. O acidente também destruiu seu sonho de ser médica. Em 1929, sofreu o primeiro aborto; em 1932, o segundo e último. Seu grande desejo era ter filhos, e a impossibilidade de concretizá-lo naturalmente deixou-a extremamente traumatizada.

Nesse período, Frida pintou o quadro O Hospital Henry Ford, também conhecido como A Cama Voadora (1932). O quadro mostra a pintora deitada no leito do hospital, localizado em Detroit, EUA. Flutuando sobre o leito podem ser vistos um feto do sexo masculino, um caramujo e um modelo  anatômico de abdome e de pelve (bacia). No chão, abaixo do leito, são vistos uma pelve óssea, uma flor e uma autoclave. 

Frida Kahlo (1907-1954) - O Hospital Henry Ford, ou A Cama Voadora (1932). Óleo sobre metal, 77,5 x 96,5 cm. Coleção Fundação Dolores Olmedo (México) - (Foto: Google)

Todas as seis figuras estão presas à mão esquerda de Frida por meio de artérias, de modo a lembrar os vasos de um cordão umbilical. O lençol sob Frida está bastante ensanguentado. Seu corpo é demasiado pequeno em relação ao tamanho do leito hospitalar, de modo a sugerir seu sofrimento e sua grande solidão.

Do olho esquerdo de Frida goteja uma enorme lágrima, simbolizando a dor de uma mãe pela perda do filho; a pelve óssea é um testemunho da causa anatômica da impossibilidade de ser mãe.

Uma pintura marcante do ponto de vista médico intitula-se O Meu Nascimento, de 1932. Nesse quadro a  óleo, a artista imagina como teria sido o parto do qual havia nascido, ligando a cena ao seu trauma quando sofreu os abortos. A cabeça da mãe de Frida encontra-se coberta por um lençol, em alusão ao fato de que sua genitoras falecera no período em que ela pintava esse quadro.

Frida Kahlo (1907-1954) - Meu Nascimento (1932), óleo sobre metal. Coleção particular (EUA) - (Foto: Google)

Há também uma pintura chamada Recordação, o Coração,  de 1937, em que ela pinta um coração do tamanho proporcional ao seu sofrimento ao ter descoberto  que seu marido, o também pintor e muralista Diego Rivera (1886-1957), mantinha um romance com sua irmã Cristina. No quadro, ela se mostra com o tórax traspassado por um objeto perfurante, enquanto o coração sangra no chão, exprimindo sua imensa angústia.

Frida Kahlo (1907-1054) -- Recordação, o Coração (1937), autorretrato, óleo sobre metal, 40 x 28,3 cm. Coleção Michel Petitjean (Paris) - (Foto: fridakahlo.org)

É interessante observar que há um curativo no seu pé esquerdo, que se explica porque, na verdade, os ferimentos nesse pé de Frida nunca cicatrizaram, tendo evoluído para osteomielite com consequente amputação. Cerca de dois anos após a amputação, fato que a deixou extremamente deprimida, a pintora veio a falecer. [Sua face não tem expressão, apenas lágrimas. Ela cortou o cabelo bem rente, e usa roupa de estilo europeu, seu preferido no período em que esteve separada de Diego Rivera. Como sempre, Frida usa seus ferimentos físicos para expressar seus danos psíquicos. Ao fundo, seu uniforme escolar e sua roupa de Tehuana, cada uma com apenas um braço, e com Frida posando sem braços e parecendo impotente.]

Frida tinha 11 meses quando a irmã Cristina nasceu. Por causa da recém-nascida, sua mãe entregou-a para ser amamentada por uma ama de leite. Um profundo sentimento de rejeição seguiu a pintora por toda vida e foi expresso no quadro Eu Mamando, também chamado A Minha Ama e Eu, de 1937. 

Frida Kahlo (1907-1954) - Eu Mamando, ou A Minha Ama e Eu, (1937), óleo sobre tela. Coleção Fundação Dolores Olmedo (México) - (Foto: Google)

Para retratar a frieza com que a ama de leite a amamentava, Frida pinta os olhos e a face dela de negro, tirando-lhe a personalidade e mostrando que não queria que a fitasse. A nutriz é vista por transparência e é possível identificar a glândula mamária e seus dutos. Da mama direita, com o mamilo enrijecido, também goteja leite.

A pintura denominada As Duas Fridas, de 1939, mostra a anatomia do coração. O objetivo dessa tela foi mostrar as duas personalidades que dominavam Frida quando da crise conjugal que resultou na separação de Diego Rivera. O trauma causado pela separação gerou uma pintura com um toque anatômico: uma personalidade é a Frida mexicana, a outra é a Frida distante, europeia.

Frida Kahlo (1907-1954) -- As Duas Fridas (1939), óleo sobre tela, 173 x 173 cm. Museu de Arte Moderna (México) - (Foto: Google)

Os corações em sofrimento estão unidos por veias braquiocefálicas direitas de ambos os corações. Tais veias estão tão unidas quanto unidas estão as mãos das Fridas. A Frida europeia mostra seu coração dilacerado, aberto, com sua anatomia à mostra. A sua veia subclavia direita está presa por uma pinça sob controle da mão direita, dando a entender que a qualquer momento a Frida abandonada se deixará esvair em sangue até a morte.

Depois de se submeter a mais uma operação de coluna, em 1946, agora em Nova Iorque, Frida pinta o quadro Árvore da Esperança, Mantém-te Firme.

Frida Kahlo (1907-1954) -- Árvore da Esperança, Mantém-te Firme (1946), óleo sobre tela. Galeria de Artes Isadora Ducasse (Nova Iorque) - (Foto: Google)

Ele retrata seu sofrimento, simbolizado pela noite, enquanto a esperança de recuperação é mostrada pelo sol brilhando no início de um novo dia. O chão sobre o qual Frida repousa encontra-se todo fendido, rachado, simbolizando as fraturas em seus ossos. Sobre a maca, ela deixa à mostra as regiões lombar e pélvica, nas quais pode-se ver a incisão sangrenta feita para a osteossíntese vertebral [osteossíntese é a aplicação de material (geralmente metálico) na coluna vertebral de modo a estabilizá-la, criando condições para ocorrer fusão vertebral (artrodese) e/ou consolidação de fraturas. Usam-se, entre outros, barras, parafusos, ganchos, cabos, placas, etc.], e outra incisão, oblíqua, na projeção da crista ilíaca direita, de onde foi retirado osso para enxertia.  

A Frida sentada ao lado da maca, com vestimenta tehuana, segura na mão esquerda o colete ortopédico que ela sonhava abandonar quando estivesse curada. Na mão direita, ela tem uma bandeira cujos dizeres deram nome ao quadro. 

A pintora se submeteu a mais de 30 cirurgias, entre as quais sete de coluna. O Dr. Juan Farrill foi o médico que operou sua coluna e foi homenageado por Frida com o quadro Autorretrato com o Retrato do Dr. Farril (1951).

Frida Kahlo (1907-1954) - Autorretrato com o retrato do Dr. Farril (1951), óleo sobre fibra dura, 41,5 x 50 cm, Galeria Arvil (Cidade do México) - (Foto: Google)

[Frida considerava que o Dr. Farrill havia salvado sua vida, o que explicaria o fato dela ter feito o quadro sob a forma de um ex-voto (retábulo). Na tela, o médico aparece em um lugar normalmente ocupado por um santo e Frida aparece como a vítima infortunada que ele salvou. Confinada em uma cadeira de rodas, Frida pinta com seu próprio sangue, usando seu coração como uma paleta -- talvez fosse essa sua maneira de dizer que pintava o quadro desde o fundo de seu coração. Os pincéis que ela mantém firmemente em suas mãos mais parecem instrumentos cirúrgicos ensanguentados.]

Corria o  ano de 1954 quando Frida resolveu retratar sua convicção, ou simpatia, pelo marxismo. Ela então pinta O Marxismo Dará Saúde aos Enfermos

Frida  Kahlo (1907-1954) -- O Marxismo dará Saúde aos Enfermos (1954), óleo sobre fibra dura, 76 x 61 cm. Museu Frida Kahlo (A Casa Azul), Cidade do México - (Foto: Google)

Nessa obra, a artista exterioriza seu sonho de que o marxismo acabaria com todo o sofrimento e dor que subjugam a humanidade. Ela estava tão entusiasmada com a ideia de que o marxismo seria a esperança  de novos dias para o povo mexicano que, nessa pintura, abandona as muletas, embora se mantenha com o colete ortopédico. As mãos do marxismo a envolvem num gesto aconchegante. A pomba da paz voa no céu. O mundo, dividido entre marxistas e capitalistas, aparece à sua direita; à esquerda de Frida vê-se Karl Marx estrangulando Tio Sam, cujo corpo é a águia americana. A mão esquerda de Frida segura o livro vermelho do comunismo, e próximo a ele vê-se o cogumelo da bomba atômica. A pomba, observamos, parece alçar voo a partir da Rússia (ex-URSS) e da China.

Em 1954, Frida Kahlo foi encontrada morta. Seu atestado de óbito registra embolia pulmonar como a causa da morte. A última anotação em seu diário permite aventar-se a hipótese de suicídio.

Última página do diário de Frida Kahlo (1907-1954) -- Última frase: "Espero alegre a saída -- e espero não voltar jamais"  - (Foto: Google)



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